sábado, 30 de novembro de 2013

 NILTON SANTOS

Lá no cantinho da sala, um senhor alto, cabelos grisalhos, solta uma gargalhada. É uma gargalhada gutural, que denuncia problemas respiratórios. O som estranho vem de Heleno de Freitas, que já teve seus entreveros com Nilton Santos. O lateral, com pouco tempo no céu, ainda não tem a autoridade demonstrada na grande área nos seus tempos de jogador. Tanta segurança – diga-se – pode ter sido o começo da relação ruim entre os dois. Pato novo, Nilton ousou desarmar Heleno, já consagrado. Mesmo em treino, o atacante temperamental não não gostava de perder. “Você é um toco!”, gritara Heleno para Santos. Chamar alguém de toco naquela época seria o mesmo de xingá-lo de ‘seu merda’. Nilton tinha tudo isso na memória, apesar do Alzheimer. Garrincha, que conversava com Heleno sobre passarinhos que vivem na Zona da Mata, pressente o perigo.
“Não sabia chutar de bico!”
“Cumpadre, esse aqui é gente boa! Aqui em cima vivemos sem raiva. Quantos zagueiros lá embaixo me baixaram o sarrafo e hoje pescamos juntos”, fala Mané, pitando um cigarro de palha. Nilton ri da ingenuidade do ponta. Continua o mesmo. A Enciclopédia estende a mão para o antigo desafeto. Heleno retribui a gentileza fazendo uma revelação. “Uma coisa que invejo, Nilton, é que você só vestiu duas camisas: a do nosso Botafogo e a da seleção. Amamos nosso clube, mas você leva essa vantagem”. Nilton disfarça a emoção e emenda. “Tivemos algo em comum”. Oldemário Touguinhó pede licença a Sandro Moreyra, com quem toma um café, porque sente cheiro de notícia quente. Já passa das seis da tarde, horário de fechamento – quando se tem que entregar as reportagens – do Diário de São Pedro. “Quem?”, se adianta Oldemário. “Aquele grosso do Flávio Costa”, responde Heleno. Nilton sorri com tanta sinceridade. “Você acredita, Heleno, que fiquei na reserva naquela Copa que você sonhava em  jogar? Sabe por que? Porque o Flávio pedia pra eu chutar de bico. Mas eu nunca soube fazer isso”. Heleno gosta da prosa. “Esse cara me sacaneou tanto que, mesmo campeão pelo Vasco, nunca me considerei um verdadeiro campeão. Queria mesmo ter sido campeão pelo Botafogo”, suspira o atacante, colocando a mão no ombro do novo habitante. A paz está selada e a matéria de Touguinhó, garantida.
Nilton vai se enturmando. E, de repente, não sente os pés no chão. Será que morri de novo?, pensa. A dúvida não dura nem dois minutos. Ele está nos ombros de João Faria da Silva, o Russão. “Ah!!! É Nilton Santos!!! Ah!!! É Nilton Santos!!!”, grita o torcedor-símbolo, acompanhado de Otacílio Batista do Nascimento, o Tarzan. “Deixa disso, Russão! me tira daqui que quero dar um abraço no doutor Bebiano”. Ele agora já abraça o mecenas dos tecidos, que ocupou a presidência do clube. “Esse aqui – diz Nilton, socando de leve o peito do dirigente – fazia tudo pelo Botafogo.”
Cacá, o amigo incansável
Numa mesa ao lado, ouve-se alguém resmungando com Pinheiro. Trata-se de Telê, sempre mal-humorado. Mas o seu astral logo muda quando vê o antigo adversário. Abraçam-se fortemente. Didi vem chegando e limpa as lágrimas com a costa da mão direita ao ver a cena. Não sabe se é choro de alegria. “Gente, sabe quem eu encontrava sempre lá embaixo? O Cacá, que jogou em 1957 com vocês e em 1961, com a gente. Foi um amigo incansável. Todo sábado ia me ver na clínica”, revela Nilton. Lembrava das histórias engraçadas. “Em 57 você nos pediu para maneirar, pra tirar o pé, quando o título já estava garantido”, relembra Didi. Os mais novos, como Rocha e Berg, se espantam com a camaradagem entre velhos rivais. “Com a gente não tinha isso. Acabava o jogo e muitas vezes pegávamos a condução juntos”, diz o recém-chegado. Valtencir, que sentiu o peso de vestir a camisa 6, confirma.
Quem se aproxima agora é Carlito Rocha, outro mítico presidente. Nilton cochicha com Garrincha. “Ele não perdeu aquelas manias esquisitas?”. Mané faz que não com a cabeça. “Uma delas – pedir ao Macaé, o dono do Biriba, para soprar as nuvens que encobriram o Cristo Redentor braços abertos sobre General Severiano – até que nos ajudava. A sombra dos atacantes me orientava na antecipação das jogadas”, lembra o ex-lateral. Seu Carlito está orgulhoso. Fala agora de Adãozinho. Nilton começa a rir. O zagueiro em questão ficara eufórico empolgado porque ia jogar. Disse que estava na ponta dos cascos, no ponto. “Estou quicando, seu Carlito! Qui-can-do!”! A atuação foi uma desgraça. Depois da partida, Carlito disse ao jogador. “Você quicou, quicou e agora aproveita e vá pra puta que o pariu!”. “E olha que o senhor não era muito de falar palavrão, né seu Carlito? Mas o senhor não se conteve naquele dia”, se recorda Nilton.
Fã de Zizinho
Nilton Santos precisa molhar a garganta. Ficou muito tempo internado. Ele vê dona Magdalena Velloso passar: é sua velha conhecida, quase 70 anos trabalhando na secretaria do clube. “Já vou providenciar seu sorvete. Uma bola de chocolate e outra de morango, né?”, pergunta a dedicada funcionária. “Que memória tem essa mulher,” espanta-se o homem sedento. Na primeira colherada, alguém bate em suas costas. Mais um fã, pensa, já tímido e constrangido. “Pô, rapaz, que emoção!”, diz ele, se levantando rapidamente para abraçar Zizinho. O constrangimento muda de lado, tamanhos os elogios de Nilton ao mestre Ziza. “Esse sujeito aqui jogou muito. Me espelhei nele quando era atacante lá no Flexeiras, meu time amador da Ilha do Governador”. “O que é isso, amiguinho?”, Zizinho corta, tentando encerrar a tietagem. Ela o constrange, principalmente vinda de uma alma tão irmã. “Por falar em idolatria, Zizinho, você vê que loucura. Já internado, soube que a Sonja, a gandulinha que virou nosso talismã em 1988, queria um autógrafo meu. Sabe pra quê? Pra tatuá-lo no ombro. Será que somos tudo isso?”, espanta-se. Claro que você é, Nilton!”, afirma categórico o crítico musical Lucio Rangel. “Idolatria não se explica. Cheguei a colecionar objetos pessoais do Louis Armsrtrong! Entendo a gandulinha, que hoje deve estar uma moçona”. Aperta a mão do ídolo e diz que vai avisar a Fernando Sabino e Paulinho mendes Campos que há morador novo no céu.
Guilherme Arinos, grande benemérito, se parece não ter se desligado daqui. Quer saber se o Botafogo tem chances de chegar à Libertadores. Nilton faz um muxoxo. As notícias que tem não são nada animadoras, avisa. “Eles estão no extra-campo”. Armando Nogueira e Maneco Müller, que passam por ali, parecem concordar. “O que acontece de relevante no futebol sempre nasce do algo irrelevante”, filosofa Armando. “O Seedorf, vejam vocês, andou dizendo que deviam mudar nosso hino. Implicou com a palavra perder. Reclamou até de uma foto do Manguinha num dos corredores do Engenhão. Para ele deviam substituir por uma de Jefferson. Coitado do Manguinha… Já sofreu tanto”. Sandro Moreyra sorri, cúmplice. “O gringo não entende que perder faz parte da vida?’, pergunta Nilton.
“Explorar os adversários!”
Mauricio Assumpção, o pai do presidente, ainda não está adaptado à “intelligentzia” botafoguense. Tímido, se identifica. “Sou irmão do Ênio”. “Grande doutor Ênio!”, se derrama em elogios Nilton Santos. Na década de 70, Nilton se aventurou no comércio: uma loja de material esportivo, na rua Voluntários de Pátria, ao lado da Cobal, mercado de hortifrutigranjeiros no Humaitá, zona sul carioca. Não era difícil encontrar o dono por lá, sempre solícito e pronto para contar velhas histórias de Garrincha. As camisas do Botafogo estavam sempre na vitrine. Houve época em que a loja fornecia os uniformes oficiais do clube. Isso atraía muitos botafoguenses. Um deles, Enio Assumpção, advogado da Fugap, a Fundação de Garantia dos Atletas Profissionais, ia com frequência à lojinha. Na hora de pagar, recebia um grande desconto. Ao invés de gostar do abatimento, protestava. “Mas Nilton, assim não venho mais. Compro aqui pra ajudar você!”. O ex-zagueiro, sorrindo, respondia. “Doutor, se eu posso ‘explorar’ flamenguistas, tricolores e vascaínos, vou tirar dinheiro logo do senhor?”
A Enciclopédia, enfim, entrega os pontos. “Fiz o que pude. Recebi mais do que dei. Até a lavadeira gostava de mim. Porque o calção ficaca limpinho. Nunca gostei de dar carrinho”, sorri com canto da boca. “Vocês sabem que uns loucos fizeram até bandeira com meu nome? É mais do que mereço. Por isso tudo tinha tanto carinho com aquela plaquinha pendurada no porta do meu quarto, que dizia ‘Seja bem-vinda, mas não fala mal do Botafogo’. Ele se levanta. A noite vai caindo. A viagem longa cansou ‘as pernas onde está o maior futebol do mundo’, como já disse um adversário portenho. Ainda há muito o que se conversar. Amanhá é outro dia.
Paulo Marcelo Sampaio é botafoguense, conselheiro do clube, autor do livro “Os dez mais do Botafogo” e um dos autores do excelente “21 depois de 21″.
P.S.: A crônica, é bom que se diga, mistura ficção e realidade

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